5 de março de 2010

Faltaria bossa à Bossa se não houvesse Johnny Alf

A Bossa Nova foi ungida a partir da batida diferente do violão de João Gilberto, das composições geniais do piano de Tom Jobim e da apaixonante escrita de Vinicius de Moraes, o primeiro poeta a escrever "letras de canções" de fato, e não poesias musicadas. Esse caldo todo levantou fervura em 1958, quando violão, canção e letra apareceram de uma só vez no LP de Eliseth Cardoso, "Canção do Amor Demais", pontuando o início do movimento, que se reconheceu como tal logo em seguida. Mas cinco, seis anos antes, o pianista Alfredo José da Silva, conhecido na noite como Johnny Alf, já mostrava bossa antes que o termo existisse, em disputadas sessions nas boates de Copacabana. Com vinte poucos anos, Alf já era cultuado entre seus colegas profissionais da noite, como Dolores Duran (que virou sua amiga íntima), Newton Teixeira (com quem dividiu forças depois, em várias boates) e Tom Jobim ( que o apelidou de Genialf) e todos eles não perdiam a oportunidade de "esticar" depois do batente, só pra ouvir a mágica harmonia pianística de Johnny Alf. João Gilberto, recém chegado da Bahia, já era assíduo desde a Cantina do César, primeiro emprego do pianista. No Clube da Chave, Ary Barroso aparecia só pra vê-lo. Além de ser um dos primeiros compositores-intérpretes e misturar Cole Porter com samba-canção, o inusitado instrumentista ainda tinha um vocal vibrante e confessional, que também fez escola. As suas antológicas performances no bar do Hotel Plaza ( entre 1953 e 1954) viviam dando casa cheia - quem quisesse conhecer o que mais de moderno estava sendo feito na música, tinha que dar um pulo no Plaza. Em 1955, deixou sua platéia carioca desamparada quando aceitou convite para tocar em São Paulo na boate Baiúca, mas antes lançou um 78 com as músicas Rapaz de Bem/O Tempo e o Vento ( compostas em 1953), considerado um marco por conter muitas características do que viria a ser Bossa Nova. Finalmente quando a bossa virou Bossa, em 1959, Johnny foi lembrado como pioneiro e participou de muitos shows universitários no Rio, embora continuasse pelas boates paulistas. Até que em 1962, voltou ao Rio, e iniciou uma 2ª fase carioca avassaladora, no Beco das Garrafas - Bottle's, Little Club, Top Club - onde formou o melhor conjunto de sua carreira, com Tião Neto no baixo e Edison Machado na bateria. Vou mais longe: este encontro fantástico foi com certeza uma das melhores formações instrumentais da música brasileira em todos os tempos. A platéia se renovava e novos talentos como Roberto Menescal, Luis Eça e Carlos Lyra corriam ao Beco para ver Alf brilhar. A partir do final dos anos 60, a ensolarada Bossa Nova entrou numa "animação suspensa" e só voltou do coma induzido nos anos 90. Se o nosso Johnny Alf já era retraído, tímido, fugidio, a ponto de recusar o convite para tocar no Carneggie Hall em 1962, na famosa noite da Bossa Nova que consagrou muita gente boa ( e outras nem tão boas assim) por medo de avião, esse período de hibernação bossanovista o fez se refugiar nas sombras ainda mais. Virou professor, continuou tocando na noite ( em São Paulo, agora em definitivo) e compondo lindamente como sempre. Algumas dessas músicas chegaram à luz, como Eu e a Brisa, interpretada por Márcia no III Festival de MPB da TV Record em 1967, que foi desclassificada nas eliminatórias mas virou sucesso de público e uma das músicas mais tocadas do pianista a partir daí. Recusou mais um convite nos anos 70, desta vez de uma de suas musas, Sarah Vaughan, que queria levá-lo para NY. Nos anos 90, com o revival do movimento que ajudou a criar, o sofisticado Johnny Alf deu as caras, primeiro em um belo disco, Olhos Negros, lançado em 1990, com vários intérpretes homenageando sua obra em duetos. Seguiram-se shows por todo o Brasil, um prêmio Shell em 1999 e momentos emocionantes nos 50 anos da Bossa, quando interagiu ao vivo com grandes nomes como Tom Jobim, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra e Stan Getz, no telão montado para a exposição "Bossa na Oca" no Ibirapuera-SP, e no ano passado, quando comemorou seus 80 anos no Sesc Pinheiros ao lado de sua amiga Alaíde Costa e Emílio Santiago.
Há três anos vinha se tratando de um câncer de próstata, e como a música sempre esteve em primeiro plano em sua vida, passou a ensaiar como membro fixo do coral do Hospital Mário Covas em Santo André-SP, próximo à casa de repouso onde passou a residir. O mesmo hospital que o homenageou em 2008 com a presença de Toquinho e convidados. Por essa época, quando soube que o grande pianista estava há poucos quilômetros de minha casa, tive um estalo de fã e fui até o hospital em dia de ensaio. Cheguei no finalzinho, e ainda consegui pegar seus últimos acordes no piano. Fui apresentado ao mestre, que me estendeu a mão e sorriu, e comentei com o professor responsável que pretendia me integrar ao grupo, mesmo sabendo que o coral era para funcionários e seus familiares - nada mais poderia justificar minha presença ali. Saí satisfeito por ter presenciado as inebriantes notas de Johnny Alf, mesmo que por poucos minutos. No ônibus, de volta pra casa, relembrei o que já lera sobre sua trajetória: a perda do pai aos três anos de idade; o encontro com o piano aos 9 anos, na casa em que sua mãe trabalhava como doméstica, sob total consentimento dos patrões; o seu amor pelas músicas americanas, que o fez se aproximar do clube Sinatra-Farney, ainda nos anos 40; o rompimento com a mãe, logo que iniciou sua carreira como pianista da noite; a imensa timidez e o gigantesco talento, sempre juntos, que o fizeram um artista cult e admirado, mas que ao mesmo tempo o distanciaram dos holofotes e do sucesso comercial; seus poucos e mal distribuidos discos, sempre com composições modernas e lampejos geniais.
Ontem, dia 04 de março, uma brisa suave, como as notas de seu piano, levou o octagenário e silencioso Johnny Alf.
Vídeos:
Chico Buarque e Johnny Alf: http://www.youtube.com/watch?v=jQWLgdiU_gI

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